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28/03/2019

Teatro

Antes do meu despertar para o teatro, os meus mestres já lá estavam. Tinham construído as suas casas e as suas poéticas sobre os vestígios das suas próprias vidas. Muitos deles não são conhecidos ou ninguém os recorda: trabalharam a partir do silêncio, na humildade das suas salas de ensaios e dos seus teatros cheios de espectadores e lentamente, após anos de trabalho e feitos extraordinários, foram deixando o seu lugar e desapareceram. Quando percebi que o meu ofício e o meu próprio destino seria seguir os seus passos, entendi também que herdava deles essa tradição fascinante e única de viver o presente sem outra expectativa que alcançar a transparência de um momento irrepetível. Um momento de encontro com o outro na penumbra de um teatro, sem mais protecção do que a verdade de um gesto, de uma palavra reveladora.
O meu país teatral são esses momentos de encontro com os espectadores que, noite após noite, entram na nossa sala, vindos dos cantos mais distantes da minha cidade para nos acompanhar e partilharmos umas horas, uns minutos. Com esses momentos únicos construo a minha vida, deixo de ser eu, de sofrer as minhas dores e renasço e compreendo o significado do ofício de fazer teatro: viver instantes de pura verdade efémera, onde sabemos que o que dizemos e fazemos, ali, sob a luz dos projectores, é verdadeiro e reflecte o mais profundo e o mais pessoal de nós próprios. O meu país teatral, o meu e o dos meus actores, é um país tecido desses momentos onde abandonamos as máscaras, a retórica, o medo de ser quem somos e nos damos as mãos na penumbra.
A tradição do teatro é horizontal. Não há quem possa afirmar que o teatro está em algum centro do mundo, em alguma cidade, em algum edifício privilegiado. O teatro, tal como eu o recebi, espraia-se por uma geografia invisível que entretece as vidas dos que o fazem e o ofício teatral num mesmo gesto unificador. Quando morrem, todos os mestres do teatro levam consigo esses momentos de lucidez e de beleza irrepetíveis; todos desaparecem do mesmo modo sem deixar outra transcendência que os ampare ou faça ilustres. Os mestres do teatro sabem-no, não há reconhecimento que valha perante esta certeza que é a raiz do nosso trabalho: criar momentos de verdade, de ambiguidade, de força, de liberdade na maior das precaridades. Deles não sobreviverão senão dados ou registos de trabalhos em vídeo e fotografias que recolheram apenas uma pálida ideia do que fizeram. Faltará sempre nesses registos a resposta silenciosa do público que entende num instante que o que ali se passa não tem tradução possível nem se encontra fora de cada um, que a verdade que ali se partilha constitui uma experiência de vida, por segundos mais diáfana do que a própria vida.
Quando compreendi que o teatro é, em si mesmo, um país, um território que abarca o mundo inteiro, nasceu em mim uma decisão que é também uma liberdade: não tens de te afastar ou mover-te do sítio onde te encontras, não tens de correr ou mudar de local. Aí, no ponto em que existes, está o público. Aí, tens a teu lado os companheiros de que necessitas. Ali, fora da tua casa, está toda a realidade quotidiana, opaca e impenetrável. Trabalhas então a partir dessa aparente imobilidade para construir a maior das viagens, para repetir a Odisseia, a viagem dos argonautas: és um viajante imóvel que não cessa de acelerar a densidade e a rigidez do teu mundo real. A tua viagem ruma ao instante, ao momento, ao irrepetível encontro face aos teus semelhantes. Viajas ao seu encontro, rumo ao seu coração, à sua subjectividade. Viajas por dentro deles, das suas emoções, das suas memórias que despertas e agitas. É vertiginosa e ninguém pode medi-la ou calá-la. Também ninguém poderá reconhecê-la na sua justa medida, é uma viagem através do imaginário da tua gente, uma semente que se semeia no mais remoto dos terrenos: a consciência cívica, ética e humana dos teus espectadores. Por tudo isto, não me movo, continuo em minha casa, entre os que me são próximos, numa aparente quietude, trabalhando dia e noite, porque tenho o segredo da velocidade.

Nada a acrescentar. A não ser: Vão ao teatro! Onde quer que estejam. Com quem estejam. A vida a acontecer e no pensamento, ver espetáculos! Sempre que possível! Só assim conheceremos a nossa geografia interior.


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